Como se fosse um cachorrinho.
Diz-se que, com excessão da saudade, o que os olhos não veem o coração não sente.
Durante a semana, a mulher de meia idade, pouco sensível às questões sociais e de direitos humanos, horrorizou-se com o que viu e seu coração sentiu: apertado, palpitou tristemente.
Toda manhã, ao abrir a janela para arejar e iluminar seu quarto com os primeiros raios de sol da aurora daquela terra da luz , ela via toda a orla marítima, de uma ponta à outra. A vista era encantadora e a animava, mas naquela semana sentiu embaraço: o que significa aquilo? Absurdo… como se fosse um cachorrinho! O que viu chocava qualquer um portador de alguma sensibilidade. Mas ela se recolhia para escovar os dentes, tomar uma chuveirada, passar os cremes, vestir-se e dirigir-se à mesa da sala de refeições para tomar o café da manhã.
Depois do desjejum frugal, ligava para uma amiga e contava indignada o que via. A amiga sugeriu que denunciasse à polícia, mas ela relutava, nunca foi assertiva, até que um dia, pensou: como ninguém vê isso? Por que ninguém faz nada? Então percebeu que ela própria estava entre os indiferentes e resolveu ligar para a polícia:
– Olha, eu gostaria de fazer uma denúncia, de informar um fato que tem se passado aqui na calçada da avenida perto de onde moro, às primeiras horas da manhã, quase que diariamente, mas eu gostaria de ficar anônima.
– Impossível, senhora , no anonimato não posso atendê-la, tenho que anotar o nome do denunciante porque pode ser uma denúncia falsa – disse o atendente.
Ela, sem assertividade nem coragem, desistiu e desligou o celular.
Do outro lado da rua, num prédio velho de quatro andares, morava um aposentado com seu filho, uma criança sensível e inteligente, que foram largados pela mulher jovem que queria aproveitar a vida enquanto era bonita.
Todo dia, o aposentado, depois de seus matinais afazeres higiênicos, abria a janela de seu quarto, fixava seus olhos no virente frescor de um esvoaçante cipreste do terreno defronte, admirava-o e, como se simbolizasse uma divindade natural, se benzia.
Já fazia uma semana desde que ele tentou demover seu filho de uma ideia que o deixava sem jeito, cheio de escrúpulos:
– Não, meu filho, por que isso?
– Porque sim.
– Porque sim não é resposta, você já tem seis anos e pode explicar melhor a razão.
A criança, pensativa, olha para o pai e vai até seu quarto procurar um papel, e o pai se dirige em busca de seus remédios para levar à mesa do café da manhã.
Já sentado, chega o filho com um papel que, dobrado, mostrava logo a seguinte ilustração:
O pai desdobra o papel e lê um poema de um poeta desconhecido:
Tal qualquer animal
As pessoas dizem “amo!”
os calangos, as rãs… não.
Da minha toca, reclamo:
Quem é afeito à destruição?
A pessoa acha que sabe
o que é o amor, mas faz guerra.
Em sua cabeça não cabe
a ideia e ela enfim se ferra!
Devasta todo o planeta
e se acha racional
melhor largar a trombeta
a baioneta letal
e se tornar de uma vez
por toda um ser natural
renunciando a estupidez
como qualquer animal
que nunca falou de amor
mas com cio se acasala
luta, sofre, sente dor
e sua cria lambe e embala.
O bicho quer bem viver:
dormir, procriar, cuidar
dar à cria o de comer
e à terra se harmonizar.
A criança olha o pai que permanece calado, o traz à realidade e explica-se:
– Eu vi aquela figura, achei bonita por causa dos bichinhos e pedi a professora para me explicar o que estava escrito. Ela me disse que era uma poema, leu e me explicou. Por isso que bem cedinho, eu quero passear com você de coleira, aquela que a mamãe botava em mim no shopping para eu não me perder, como se fosse um cachorrinho porque eu não quero fazer guerra que mata crianças e mulheres.
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